Volta às aulas sem celular

A volta às aulas de 2025 foi diferente para muitos estudantes sejam da rede pública, privada, do ensino fundamental ou médio, pois desde 13 de janeiro, a Lei 15.100, que proíbe o uso de celular no ambiente escolar de todo o Brasil, está em vigor.

O objetivo da legislação é proteger a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes. Cabe às instituições de ensino públicas e privadas, definirem as estratégias de implementação, respeitando algumas exceções para o uso de celular na escola, como em atividades pedagógicas supervisionadas pelos professores, bem como para garantir acessibilidade e inclusão como nos casos de estudantes que utilizam o aparelho para fazer leitura de voz de imagens, por exemplo, ou para fins de saúde e segurança do aluno.

A lei surgiu em resposta ao crescente debate sobre o uso excessivo de celulares por crianças e adolescentes e seus impactos negativos no aprendizado, na concentração e na saúde mental. Diversos estudos apontam que o excesso de telas pode prejudicar o desempenho acadêmico, reduzir a interação social e aumentar índices de ansiedade e depressão entre crianças e adolescentes​. O tema também gerou mudanças nas instituições de ensino de outros países, como Austrália e França, que também já proíbem o uso de celulares nas dependências escolares.

“Apesar da tecnologia digital facilitar a vida de modo geral, são projetadas para provocar uma necessidade contínua de estar on-line. Isso aumenta a exposição à conteúdos bons e ruins e pode levar a comportamento de dependência, em todas as idades”, aponta Renata Maria Silva Santos, Terapeuta Ocupacional, Doutora em medicina molecular e pesquisadora do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Considero a proibição positiva, pois ajudará a melhorar a saúde e o funcionamento desses jovens.”

Nesse sentido, a especialista destaca que a família tem papel fundamental para essa mudança de hábito dar certo. “A família deve enriquecer a vida fora das telas para que o jovem obtenha satisfação com variadas atividades. Deve também ficar atenta às necessidades psicológicas dessas crianças e adolescentes. Já os profissionais da educação, podem contribuir no sentido de se prepararem para perceber alguns sinais nos jovens, quando estão forçados a ficar horas sem os celulares. Eles podem ter dificuldades de regulação emocional e de controle inibitório, apresentando agitação e irritabilidade, ou, às vezes, um desinteresse generalizado. Muitas vezes, o uso excessivo de telas ocorre para suprir necessidades psicológicas básicas, que não têm sido supridas. Sem o celular, o transtorno fica mais aparente.”

A saúde mental

Doutora Renata explica que a saúde mental é um estado de bem-estar que permite aos indivíduos lidarem com o estresse normal da vida e funcionarem produtivamente. “As necessidades psicológicas básicas (autonomia, competência e relacionamento) são inerentes à natureza humana, influenciam o bem-estar e a motivação, e são fundamentais para o funcionamento saudável do indivíduo. Quando essas necessidades psicológicas básicas são bem atendidas, observa-se uma diminuição no vício por redes sociais, o que, por sua vez, está ligado a uma redução na tendência à procrastinação acadêmica.”

Entende-se como consequência do vício em internet a diminuição da atenção, da memória de trabalho e da empatia. A especialista também pontua que a sobrecarga de informações e a constante busca por novidades levam à fadiga cognitiva e distorções na percepção da realidade. Além disso, a estimulação sensorial crônica limita o desenvolvimento do raciocínio crítico, da capacidade de execução e conclusão de tarefas, como também ameaça o bem-estar mental. “De modo geral, temos áreas no córtex cerebral que comandam o controle inibitório, ou seja, pensarmos antes de agir, termos censura quando necessário, isso quer dizer, saímos do automático. No cérebro, temos também áreas nas quais controlamos a fala, os pensamentos, a inteligência, os movimentos, a audição, a visão e a integração de todos os estímulos às nossas memórias, coisas que já aprendemos e precisamos usar no momento”, explica Renata.

Quando essas áreas ficam muito sobrecarregadas, seja pensando a respeito das palavras de um comentário da internet, quando se ativa o sistema de recompensa por um jogo on-line, ou quando se olha para telas cheias de estímulos salientes e envolventes, a especialista alerta que sobra pouco espaço para o desenvolvimento de um discurso rico e consistente, para se ter habilidades de leitura e escrita, até mesmo para manipular dados recentes que dependem da memória de trabalho, como usar uma fórmula que já é de conhecimento, entre outras habilidades.

A Organização Mundial da Saúde recomenda que menores de 2 anos não sejam expostos às telas. Entre 2 e 5 anos, somente a 1 hora de tela por dia. De 5 anos até adolescência, 2 horas de telas por dia. Nesse sentido, a Doutora Renata acredita que a proibição do uso dos celulares nas escolas é pouco para os malefícios causados a crianças e adolescentes pelo uso excessivo de telas. “Há de se colocar alguma coisa no lugar. É necessário enriquecer a vida fora da tela para que o smartphone não faça tanta falta. Hoje temos os filhos do quarto, que passam a maior parte do tempo em casa dentro do cômodo, imersos no mundo da internet. Sendo assim, os familiares, sobretudo os pais, devem atentar-se às necessidades psicológicas básicas desses jovens. Devem ajudá-los a organizar a rotina e otimizar o tempo, para que consigam realizar atividades sem telas e encontrem satisfação nelas.”

O cérebro é plástico

Agitação, irritabilidade, isolamento ou excessiva falta de interesse (tédio), esses podem ser alguns dos sintomas da abstinência de uso do celular. Mas será que as crianças e os adolescentes estão preparados para enfrentar essa mudança de hábito? Segundo a terapeuta ocupacional, sim. “A infância e adolescência são fases do desenvolvimento em que o sistema nervoso central apresenta enorme plasticidade, exatamente durante essas fases temos que frequentar escolas, moldando essa plasticidade para o acúmulo e processamento de conteúdos com o objetivo de transformá-los em conhecimento”, explica Renata. “Esse conhecimento prepara as áreas cerebrais para reconhecer os mais variados estímulos e comandos, que posteriormente ajudam a elaborar e fornecer respostas cada vez mais refinadas para o mundo à nossa volta. Isso favorece também o sucesso na funcionalidade para as próximas fases do ciclo vital. Sendo assim, essa é a fase de maior probabilidade de que estejam preparadas para a mudança.”

Caso haja crises de abstinência, a especialista recomenda que os professores encorajem os estudantes a falarem um pouco sobre o que estão sentindo, proponham exercícios de respiração para busca de conforto e regulação emocional. “Importante a escola informar aos pais, para que seja dada sequência ao tratamento com profissionais especializados e que a família apoie, motive o jovem a buscar ajuda”, orienta Renata.  “Nos casos de problemas de saúde mental mais graves, não temos como saber se tudo poderá ser recuperado, pois o funcionamento psíquico do jovem já se encontra alterado e pode ser mais vulnerável à ação da dependência de internet, jogos ou redes sociais.”

Estratégias para cumprir a nova lei e manter a saúde mental

  • Instrumentalizar o jovem para fazer bom uso da tecnologia de forma a não adoecer quando estiver longe dela.

  • Deixar claro as situações que podem gerar penalidade (violação de regras).

  • Orientar como usar as redes sociais de forma eficaz e segura, evitar conflitos, períodos de desconexão e foco no positivo.

  • Ensinar habilidades de comunicação, como expressar suas experiências e sentimentos de maneira saudável e adequada;

  • Ajudar na gestão do tempo: estabelecer limites saudáveis para o uso das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação)

  • Desenvolver uma perspectiva crítica sobre o conteúdo on-line.

  • Incremento do ambiente escolar – as TICs não farão tanta falta.

  • Desenvolver um ambiente esclarecedor acerca dos impactos negativos da inatividade cognitiva no desenvolvimento cerebral em curto e longo prazo.

  • Mostrar as áreas cerebrais responsáveis por cada função e reforçar que essas áreas precisam ser estimuladas para continuarem a desenvolver conexões.

  • Reforçar que todas as emoções são necessárias para o preparo dos eventos da vida. Elas guiam e trazem significado as experiências.


    Conscientização sobre saúde mental

    • Reconhecer sinais de estresse, ansiedade, depressão, por meio do suporte profissional da escola.
    • Lembrar que o estudante pode estar dependente do celular pelo uso excessivo, ou usar excessivamente para regular problemas prévios de saúde mental.
    • Observação atenta: identificar alunos que apresentem mudanças comportamentais significativas, como isolamento, ansiedade ou irritabilidade e desinteresse social, investigar se o problema ocorre em outros contextos, podendo encaminhar para apoio psicológico se necessário.


    Práticas possíveis

    • Psicoeducação: explicar aos alunos os prós e contras da medida, antecipar dificuldades e discutir soluções em conjunto.
    • Regulação emocional: nomear sentimentos, reconhecer sinais fisiológicos de emoções intensas e ensinar técnicas de respiração.
    • Espaço para expressão: permitir que os alunos compartilhem suas dificuldades e identificar padrões comportamentais.
    • Proposição de técnicas de relaxamento e mindfulness (prática de atenção plena ao momento presente), gerenciar o estresse e a ansiedade provocados pela ausência momentânea do celular.
    • Fortalecer autoestima e resiliência: explorar interesses e hobbies fora da vida digital/redes sociais, priorizar uma identidade que não esteja exclusivamente vinculada ao sucesso em tudo

“Mesmo no contexto atual de dificuldade de atenção e desenvolvimento intelectual, cerca de 20% dos pais acham que os filhos devem se manter com o telefone nas dependências escolares. Isso pode atrapalhar bastante o cumprimento da legislação.  Nesse sentido, as famílias ocupam papel central na moldagem do comportamento das crianças para o uso responsável das TICs. Por isso, a escola deve contar com o apoio de pais e responsáveis para que orientem as crianças e adolescentes a deixarem o telefone na mochila e no silencioso e sem notificações, explicando que as mudanças vieram para que elas possam ter variedade de estímulos e possam aprender ainda mais”, recomenda a Dra. Renata.