Julho não é apenas mês de férias escolares. É, também, um convite à escuta e à ação. Criado para fortalecer a agenda de proteção infantojuvenil, o Julho Coral propõe um olhar comprometido com os direitos das crianças e adolescentes, um cuidado que precisa extrapolar campanhas institucionais e se concretizar na prática cotidiana de famílias, escolas, instituições e governos.
Esse chamado ganha ainda mais força em 2025, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 35 anos. Promulgado em 13 de julho de 1990, o ECA revolucionou o modo como o Brasil pensa, legisla e atua sobre a infância.
Inspirado na Convenção sobre os Direitos da Criança da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), adotada em 1989, o Estatuto introduziu no ordenamento jurídico o conceito de proteção integral e prioridade absoluta — princípios que, segundo especialistas, ainda caminham em busca de plena efetivação.
“O ECA foi um divisor de águas. O Brasil passou a olhar para suas crianças com responsabilidade, não apenas com cuidado”, destaca Andreia Santos, professora Adjunto IV no Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas.
Um novo paradigma
“Com o ECA, o olhar punitivo embasado pelo Código de Menor deu lugar a uma série de melhorias. O Estatuto não só reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos, mas também obrigou o Estado e a sociedade a reverem suas responsabilidades. A legislação mudou paradigmas, ampliou o alcance das políticas públicas e deu voz aos atores que lutam por equidade e dignidade nas fases mais vulneráveis da vida”, completa Andreia.
Ligia Mafei Guidi, Defensora Pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude (NEIJ) do Estado de São Paulo, evoca um símbolo poderoso: uma fotografia de Sebastião Salgado de 1996, que retrata bebês amontoados em um telhado na antiga Febem, hoje Fundação Casa.
“Essa foto é de 1996, o ECA de 1990. Hoje, uma cena destas é inconcebível, mas antes do ECA — e mesmo após sua criação — ainda havia esse senso de cuidado deturpado, bastando apenas tirar da rua ou de qualquer outra situação de vulnerabilidade.”

Conquistas e transformações
Entre os avanços estruturais, Andreia destaca o fortalecimento dos Conselhos Tutelares, o papel da Defensoria Pública na garantia de direitos e a mobilização intersetorial entre educação, saúde, assistência social e sistema de justiça.
Ligia reforça que o maior mérito do Estatuto foi deixar de tratar a infância como objeto de tutela e reconhecê-la como fase essencial de desenvolvimento.
“A principal conquista do ECA foi colocar crianças e adolescentes como pessoas, sujeitos de direitos, respeitando-se sua condição especial — e não mais como ‘objetos’ conforme uma visão adultocêntrica.”
Essa mudança conceitual consolidou o direito à escola, ao lazer, à convivência familiar, ao cuidado médico e à escuta qualificada, mas também revelou a interseccionalidade dos direitos, como lembra Ligia. “Não há como ter saúde se não houver moradia adequada, por exemplo.”
Dilemas estruturais e não implementação
Mesmo com tantos avanços, o maior entrave continua sendo a implementação real e sistêmica do ECA. São milhões de crianças fora da escola, em situação de vulnerabilidade extrema, em moradias precárias, sem acesso ao básico. “O problema não é a insuficiência do ECA, mas a falta de sua efetiva aplicação”, destaca a Defensora Pública.
Andreia reforça que esse descuido estrutural não pode ser naturalizado. “O ECA é lindo de ler, lindo de ver, mas a continuidade de suas ações é muito lenta. Ele ainda é pouco conhecido, pouco lido, inclusive pelas crianças.” Ela menciona iniciativas como O ECA vai à escola, mas pontua que ainda são tímidas. “Ainda hoje temos meninas sem acesso à proteção contra violência, crianças invisibilizadas por políticas excludentes e serviços públicos desarticulados.”

Tecnologia e regulação digital
Outro ponto sensível é o uso da tecnologia na educação e no cotidiano infantojuvenil. Ligia alerta sobre a hiperplataformização do ensino público. “As coisas vão ficando mecanizadas e não desenvolvem capacidade crítica de raciocínio. Ainda não temos as consequências disso.”
Andreia também enxerga riscos na ausência de regulação digital, principalmente após a pandemia. “Na época da criação do ECA, não havia esse espanto tecnológico que vemos hoje. Eu falo espanto porque mudou muito em pouco tempo. A pandemia foi um marco nesse sentido.” Ela reforça que o alerta não é exclusivo do Brasil. “Não há regulação mundial. Ninguém está sabendo lidar com essa questão das mídias sociais e das inteligências artificiais.”
Ambas as especialistas defendem que essa regulação seja feita por legislação própria, e não por meio de alterações no ECA.
Julho Coral como espaço de mobilização e vigilância
Apesar de pouco difundida, a campanha Julho Coral é valorizada por especialistas como espaço simbólico de reafirmação dos princípios do ECA e estímulo à fiscalização do poder público. “É essencial que campanhas como essas não sirvam apenas para movimentar pautas, mas para garantir ações práticas de fiscalização e cuidado contínuo”, destaca a Defensora Pública.
A professora da PUC Minas reforça o papel da sociedade civil como agente ativo na proteção da infância.
“Temos que sair da lógica de eventos comemorativos e migrar para o compromisso político com a infância. As crianças são nossas, são os filhos do Brasil.”
Ela também alerta para o racismo estrutural e para o excesso de responsabilidade depositado apenas no Estado. “Não há paridade. Esse cuidado ficou muito a cargo do Estado, que não consegue atender a todas as crianças e acaba caindo no tão criticado assistencialismo.”

O Brasil perante os olhos do mundo
Recentemente, durante uma sessão da ONU que avaliou o cumprimento da Convenção dos Direitos da Criança no Brasil, os relatores foram enfáticos: o país possui uma legislação avançada, mas falha gravemente em sua aplicação. Temas como militarização indevida, aborto legal em casos de violência sexual e orçamento público foram apontados como campos de preocupação urgente. “O ECA é reconhecido como um instrumento jurídico avançado. Novamente, o que falta é a sua real implementação”, enfatiza Ligia.

Um chamado à ação
Julho Coral não é apenas um mês no calendário. É um lembrete vigoroso de que proteger a infância é um dever coletivo, contínuo e não negociável. Os 35 anos do ECA nos convocam a reavaliar não apenas as conquistas, mas principalmente o que está sendo negligenciado. “Quando fazemos campanhas educativas em qualquer nível, estamos formando gerações futuras. Vamos levar o ECA às escolas, às famílias, às igrejas. Trabalhar de forma efetiva, ensinando, socializando, criando empatia”, finaliza Andreia. “A gente regula muito a infância, mas na vida adulta essa prática é esquecida. Por isso, precisamos relembrar a todos que manter valores, regras e cultura é também proteger nossas crianças.”

Andreia dos Santos, professora Adjunto IV no Departamento de Ciências Sociais – PUC Minas. Doutora e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

Ligia Mafei Guidi, coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Defensora Pública desde 2014, é graduada em Direito pela Universidade de São Paulo – USP.